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Os números e a humanidade (II)

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Brasileira residente nos Estados Unidos escreveu para o blog interessada na associação dos números com a música. Do osso de Ishango ao conceito de números naturais foi um pulo, ainda que tenha demorado alguns milhares de anos. Números naturais são aqueles que são observados na natureza: um cachorro, duas árvores, cinco laranjas, dezessete macacos. No conjunto dos números naturais não há frações; quando alguém, na era paleolítica, quebrava uma pedra, não ficava com frações e sim com dois ou três pedaços de pedras. Dividia a comida em quatro ou cinco pedaços de carcaça. Uma árvore desgalhada passava a ser um troco e muitos galhos.
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A técnica da contagem deve ter proporcionado significativas vantagens na transmissão de informações, como quantidades de água e alimentos, trazidas por caçadores para o restante da tribo. Vantagens também ocorriam nos conflitos, com a contagem dos guerreiros para avaliação de defesas e reações. Episódio de nossos tempos mostra a importância estratégica de tais habilidades: alguém encarregado da segurança de determinado sítio comunica-se com sua base informando que um ataque é iminente pois do local onde se encontra pode ver os movimentos dos adversários. Perguntado sobre o total de inimigos, responde que são 508. Quando lhe pedem informações de como chegou a um número tão preciso, responde: “Bem, vêm oito na frente e uns 500 lá atrás...”. Essa tribo certamente perdeu a batalha ou tempo e recursos tentando se organizar.
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Os números naturais, e sua generalização, os números inteiros, têm a propriedade de serem obtidos uns dos outros, pela soma, subtração ou multiplicação. Com a divisão, apareceram as frações e com elas o conceito de números racionais, isto é os inteiros (antigos naturais) e o quociente, ou razão, entre eles. Nessas considerações, não estão incluídos o zero e os números negativos, para simplificar a questão da música.
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Instrumentados com os números racionais e a geometria, Pitágoras e seus seguidores, os pitagóricos, pintaram e bordaram e, também, cantaram e dançaram. Formavam uma associação secreta, meio religiosa, meio misteriosa, e atribuíam aos números inteiros, e suas relações, poderes divinos, isso lá pelo século VI antes de Cristo. Até que um novato indagou qual seria o valor da hipotenusa de um triângulo retângulo cujos catetos tivessem a unidade como medida. “Simples, meu caro” escutou, “um ao quadrado, um; o outro ao quadrado, também um; um mais um, dois. A hipotenusa tem como comprimento a raiz quadrada de dois.” “Até aí eu sei” teria respondido o criador de caso, “mas quanto é raiz quadrada de dois?” “Basta procurar dois números inteiros que, divididos entre si, resulte no valor da raiz quadrada de dois.” “Mestre, procurei exaustivamente esses números. Não existem!”. E ele estava certo: a raiz quadrada de dois não é um número racional, pois tem uma quantidade infinita de casas decimais, sem um padrão repetitivo como nas dízimas periódicas. Estavam, assim, descobertos os números irracionais, que de doidos não têm nada. Mas se os irracionais não são doidos, o mesmo não aconteceu com os pitagóricos que perderam a fé na divindade dos números racionais e na infalibilidade do líder.
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Mas não antes de estruturarem a música aritmeticamente, num conjunto de sons harmoniosos cujos valores das freqüências da escala musical se relacionam, entre si, como os números racionais, isto é, como a razão entre números inteiros. Descobertas essas, feitas a partir de experimentos com sons produzidos por cordas vibratórias.
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Quando numa orquestra sinfônica, o spalla puxa um som cuja freqüência não se enquadre na técnica pitagórica ou seja múltipla, se conseguir, da raiz quadrada de dois, da relação entre o diâmetro e a circunferência de um círculo, da base dos logaritmos neperianos ou de uma infinidade de outros valores proibidos, ele certamente desafinará. Por outro lado, seguindo a regra de Pitágoras, mesmo um samba de uma nota só pode ser magnífica obra de arte.

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Os números e a humanidade (I)

O primeiro jogo de um campeonato sempre é complicado para ambas as equipes, mesmo se uma delas for pentacampeã mundial da modalidade. Então, quando o jogo é solitário e o competidor nunca foi sequer um penúltimo colocado, o embate é muito mais difícil. Trata-se do caso do primeiro artigo do autor deste texto para o Jornal da Comunidade, originado de uma desinteressada troca de comentários com o editor Washington Sidney a respeito de um ensaio seu publicado na notável coluna Eureka! Convite feito, desafio aceito. Se alguém encontrar este texto publicado no prestigioso periódico estará provado que passei no vestibular, mesmo que a façanha não se repita.



Considerei a escolha de um assunto apropriado ponto importante no teste e optei pelo ensino da matemática; atende ao objetivo geral do caderno, educação, e ao particular, ciência. Atende, também, a uma necessidade estratégica do país, que precisa se tornar independente, científica e tecnologicamente, para poder candidatar-se ao vestibular de membro do exigente clube das nações do primeiro mundo. Como motivação secundária, considerei dois fatos de meu conhecimento: o primeiro, a respeito de alguém avesso à matemática que folheou um livro e exclamou: “Gostei deste; não tem equações!” O segundo, sobre os dissabores de um professor de matemática 2 (funções com duas variáveis), num curso para estudantes de “ciências meio-exatas”. Como o professor exigia dos alunos, como pré-requisito, conhecimentos de matemática 1 (funções com uma variável) e a maioria não sabia sequer “matemática 0”, houve conflito com a direção da faculdade, que considerava cada aluno como cliente e, portanto, com o direito assegurado ao diploma que estava sendo “financiado” em “suaves” mensalidades. É difícil imaginar como seria um curso de física de partículas, nessa instituição de ensino “superior”, perante a necessidade de uma disciplina de “matemática 11”.




Uma dosagem adequada de matemática no currículo de qualquer curso superior é uma necessidade absoluta; na educação básica, também. Na era da globalização, o conhecimento é a mais valiosa commodity e não há pesquisa, atividade que gera conhecimentos, que prescinda da matemática, no mínimo como instrumento para medição dos fenômenos estudados, sejam sociais, científicos ou de qualquer natureza.




Para concluir, apresento uma sugestão de tema de trabalho de pós-graduação a bacharéis em “ciências não-exatas”: a importância dos números para o desenvolvimento da humanidade. A história, como ciência, existe apenas há cerca de seis mil anos, a partir de quando os sumérios inventaram a escrita. No entanto, o osso de Ishango, peça com 15 a 20 mil anos, evidencia que na era paleolítica a humanidade já usava artefatos para a representação de números e operações aritméticas simples. Os entalhes sugerem o instigante conhecimento sobre números primos, ainda hoje um dos assuntos mais complexos da teoria dos números. Deixo a seguinte pergunta para meditação: a humanidade teria aprendido a escrever se antes não houvesse aprendido a contar?

Informações sobre o osso de Ishango: http://pt.wikipedia.org/wiki/Osso_de_Ishango

Página de abertura do blog: http://www.kosmologblog.blogspot.com/



Publicado no Jornal da Comunidade, na edição de 25/10 a 1º/11 de 2008, no caderno Educação & Ciência, página 14. A ilustração é de autoria não divulgada pela editoria do periódico.